Produção audiovisual das periferias é crescente e alcança visibilidade

Entre os dias 6 e 17 de junho de 2007 acontece um festival inovador no Rio de Janeiro: é o Festival Audiovisual Visões Periféricas, promovido pelo Observatório das Favelas, que tem como objetivo justamente trazer à tona uma pluralidade de olhares sobre os espaços periféricos, através da produção dos próprios moradores.

O Festival recebeu 185 inscrições de todo o país e selecionou 34 delas para a mostra competitiva, das quais quatro de Minas Gerais. A organização do Festival confirma que esses números mostram que a produção audiovisual das favelas brasileiras vive fase de ebulição.

De acordo com Márcio Blanco, coordenador de audiovisual da Escola Popular de Comunicação Crítica, “Em um mundo cada vez mais midiatizado, esses novos realizadores se colocam no centro do mundo ao assumirem uma postura ativa de produtores de discursos sobre seus espaços. É um fenômeno posto em marcha por diversos fatores, entre eles o aumento da responsabilidade social pelas empresas – o que permitiu o surgimento de projetos em audiovisual em todo o país; as profundas transformações trazidas pela tecnologia digital desde a década de 90; o papel cada vez mais importante desempenhado pelos meios de comunicação no nosso dia a dia e na vida do país. “

De fato, o que se vê é que o desenvolvimento de projetos audiovisuais tem sido cada vez mais freqüente nas vilas e favelas ou com jovens da periferia. Entre os diversos tipos de intervenções, as mais encontradas são aquelas com foco na formação. Oficinas de vídeo, rádio e fotografia são ações que vêm se destacando na última década. Normalmente, estas atividades integram projetos sociais, culturais ou de cunho educativo, e seus produtos são apresentados sob formas diversas, em exposições, programas para rádios comunitárias, vídeos educativos, entre outros. Ultimamente, ações para público amplo e com foco artístico tem ganhando espaço e dado nova feição as intervenções audiovisuais na periferia.

Importante destacar o duplo papel desses processos formativos: se, por um lado, contribuem para a formação técnica e artística dos envolvidos nas oficinas, que capacitam-se para a produção audiovisual, por outro assumem cada vez mais a responsabilidade de dar voz a novos atores sociais, que até então não tinham acesso aos meios de comunicação.

Uma experiência ímpar nesse sentido, em Minas Gerais, é a Rede Jovem de Cidadania, projeto da AIC – Associação Imagem Comunitária, que aliás foi um dos selecionados mineiros para o Festival Visões Periféricas, com os vídeos “Sons da Serra” (Documentário, 20’08”) e “Guerrilha Poética” (Documentário, 19’40”).

A Rede Jovem de Cidadania envolve centenas de adolescentes e jovens na produção de matérias diversas para rádio, jornal, internet, agência de notícias e televisão. O de maior visibilidade é programa de TV, realizado em parceria com a Rede Minas. A experiência inédita no país mostra um programa produzido e gravado por integrantes de movimentos juvenis da região metropolitana de Belo Horizonte. Duas caraterísticas tornam esta ação do projeto muito peculiar: os jovens estão presentes em todas as etapas de produção, o que é pouco comum, principalmente em produtos para TV; o programa é veiculado em uma rede de TV não comunitária ou universitária e em canal aberto. A ONG tem ainda um projeto de rádio-escola chamado CUCO, desenvolvido em instituições de ensino da capital.

Com foco mais voltado para a divulgação da produção cultural das favelas de Belo Horizonte, o Favela é Isso Aí também participa do Festival Visões Periféricas, com o documentário “Domingos do Cavaco” (4’59”). Dirigido por Beto Assenção, o vídeo conta a trajetória do sambista do Morro das Pedras (ver foto), que, não por coincidência, é pai de U-Gueto, vocalista do Grupo Arautos do Gueto.

O coordenador da área de vídeo da ong é César Maurício, formado em cinema de animação e com vários vídeos premiados no país. Além de trabalhar oficinas de videodocumentário com jovens, César destaca a importância do trabalho que vem realizando com as técnicas de animação. Segundo ele, a liberdade criativa que a animação traz, pela flexibilidade da própria técnica, permite aos jovens falar mais livremente de suas realidades, envolver-se mais nos trabalhos e conquistar uma boa visibilidade junto ao público externo às comunidades.

César ressalta que os resultados das oficinas que realiza através do Favela é Isso Aí, seja de documentário, seja de animação, vão muito além dos vídeos produzidos pelos participantes. Para o arte-educador, o processo é o mais importante, tanto pela integração entre os jovens, quanto pela ampliação da visão e das possibilidades dos participantes, em construir e narrar suas histórias através do vídeo. É um processo de crescimento individual, mas também coletivo. “É o jovem sendo visto e vendo diferente sua comunidade,” realça.

O deslocamento do olhar – do observador externo para o próprio morador da comunidade – é um processo que fortalece o que se convencionou chamar de “empoderamento” das periferias. Vindo do inglês “enpowerment”, significa o processo de fortalecimento, de autonomização e de consciência dos atores sociais.

De acordo com Carlos Lopes, representante das Nações Unidas e do PNUD no Brasil, em seu livro Cooperação e desenvolvimento humano, “(…) há uma ligação íntima entre empoderamento e apropriação… o propósito do empoderamento é a expansão de escolhas e possibilidades, a base do desenvolvimento humano. Empoderamento tem a ver com aumento de capacidades… expansão que envolve um aumento das possibilidades e portanto, um aumento da liberdade”.

A ONG Oficina de Imagens é a outra representante de Minas Gerais no Festival Visões Periféricas, com o documentário “Assalto de Imagens na Serra”, 6 minutos de duração. O vídeo selecionado é resultado do Projeto Ocupar Espaços, que traz circuitos audiovisuais interativos nas comunidades, com projeção de imagens diversas em paredes das casas, algumas delas projetadas em tempo real, na medida em que são feitas, no local da intervenção e em outras comunidades. “A idéia é estabelecer processos de produção e difusão de informação para intercâmbios sócio-culturais entre grupos étnicos de diferentes comunidades”, como descreve o site do projeto.

Fora do estado, há outras ações mais tradicionais e amplamente conhecidas, que tem se tornado parâmetro para atividades no mesmo segmento em todo o país. No Rio de Janeiro, por exemplo, o Observatório de Favelas, em uma de suas ações, mantém uma agência de fotografia chamada “Imagens do Povo”, composta apenas por fotógrafos da periferia, todos formados na comunidade e, hoje, com atuação profissional. Ao contrário do que muitos pensam, as imagens comercializadas por eles não são fotografias exclusivas sobre ações do tráfico de drogas, como era no filme Cidade de Deus, mas imagens diversas documentais e artísticas. O objetivo principal do projeto é constituir um acervo de imagens sobre grupos e movimentos populares do país, através do registro da realidade vivida nas periferias e favelas do Brasil. No que se refere ao fazer fotográfico, a página do Observatório descreve a atuação da ONG em uma simples frase: “Este projeto parte da idéia de que democratizar a fotografia é derramar um olhar humano sobre a sociedade”.

A Oficina de Imagens também aposta na fotografia como ferramenta para compreensão da realidade. Seu primeiro projeto foi o Latanet – da latinha à internet, que alia o processo fotográfico pin-hole à Internet com o objetivo intercâmbio de experiências entre jovens de diferentes contextos. De acordo com Paula Fortuna, uma das idealizadoras do projeto, “a fotografia enquanto linguagem torna-se um recurso importante para ler e compreender a realidade. Também no seu aspecto lúdico pode desenvolver a sensibilidade e a percepção. Ser cidadão neste mundo, muitas vezes denominado com ‘civilização da imagem’, passa fundamentalmente por aprender a construir e ler imagens. A fotografia pode ser uma poderosa ferramenta nesse processo, sendo um veículo para aquisição do conhecimento e para expressão da cidadania”.

As intervenções audiovisuais na periferia, iniciadas pelo terceiro setor e estendidas às escolas e demais espaços de formação, vem sendo, aos poucos, reconhecida pelo poder governamental. O projeto Latanet foi desenvolvido junto a alunos e professores da Rede Pública, com a proposta de inclusão da metodologia no currículo escolar. As ações da Rede Jovem de Cidadania abrangem um público de 500 alunos da rede pública por ano. E na capital mineira o viés da produção audiovisual já ganhou importância na atuação governamental. O Programa Fica Vivo, através de Oficinas de Comunicação, realizadas com jovens das vilas e favelas de BH, conseguiu levar a exposição “Um outro olhar”, com fotografias feitas por adolescentes, ao conhecimento da cidade. As fotos, todas produzidas por eles, viraram cartões postais.

Mais do que uma intervenção no espaço, as ações desse tipo, levam a periferia para outros lugares, outras casas, outras realidades. Esse foi o objetivo do Favela é Isso Aí ao iniciar seus trabalhos nas áreas da formação e da documentação, ambas com o desenvolvimento de produtos audiovisuais. Durante as pesquisas para elaboração do Guia Cultural das Vilas e Favelas de Belo Horizonte, uma das principais dificuldades apontadas pelos artistas foi a necessidade de divulgação e visibilidade. Pensando nisso, a entidade desenvolveu o projeto Articulação e Visibilidade para Artistas da Periferia, patrocinado pelo então Instituto Telemar, hoje Instituto Oi Futuro.

No contexto desse projeto, a ação que mais se desenvolveu foi o Banco da Memória, que, entre outras mídias, desenvolveu um site para as comunidades e produziu 12 documentários sobre os artistas das favelas de Belo Horizonte, um deles o de Domingos do Cavaco. Esse material não é apenas um registro, no sentido estrito do termo, mas tem sido usado pelos artistas e comunidades como portifólio, material de apresentação, enfim, como uma vitrine para a visibilidade dessa rica e intensa produção cultural.

O Instituto Oi Futuro é também mantenedor de uma iniciativa inovadora na área das novas tecnologias: é a Kabum!, escola livre que já conta com três unidades, no Rio de Janeiro (parceria com a ong Spetaculo), em Salvador (parceria com a ong Cipó) e em Recife (parceria com a ong Auçuba). A escola capacita jovens das comunidades para o domínio das novas tecnologias audiovisuais, culminando na formação de núcleos de produção, que geram renda para os próprios jovens.

Embora as intervenções de organizações do terceiro setor sejam as grandes representantes desta onda de ações envolvendo a produção audiovisual na periferia, ações individuais também são capazes de chamar bastante atenção. Em Sabará, cidade da região metropolitana de Belo Horizonte, um morador chamado Francisco dos Santos criou, produz e apresenta uma programação peculiar, feita em sua própria casa e exibida no muro dela, para quem passa no local e para os vizinhos da mesma rua. A Tv Muro, como é chamada, tem até um reality show, mostrando rotina da família no muro da casa, com grande audiência da vizinhança. Em entrevistas diversas, quando perguntado sobre o motivo do feito, o professor de artes da Rede Pública responde que só queria ficar famoso, já que muitos sonham em estar do lado de dentro da telinha.

Nas telonas, breve será lançado o trabalho que o cineasta Cacá Diegues está realizando com jovens cineastas moradores de favelas do Rio de Janeiro, principalmente do complexo da Maré, Vidigal, Cidade de Deus, Parada de Lucas e Lapa. O projeto é a refilmagem do filme "Cinco Vezes Favela", documentário produzido pela UNE em 1961, com cinco episódios de curta metragem. A proposta agora é a versão dos próprios moradores sobre suas comunidades, batizada de “Cinco vezes favela, agora por eles mesmos”. Vale a pena conferir e conhecer um pouco dessa rica produção audiovisual das favelas, cada vez mais intensa e visível.

FONTES PARA CONSULTA:

Visões Periféricas / Observatorio de Favelas – RJ: (21) 3888-3220 Ramal 208
E-mail: visoes@observatoriodefavelas.org.br
Site: www.observatoriodefavelas.org.br
Favela é Isso Aí – César Maurício (31) 3282-3816 / 9715-7305
E-mail: favelaeissoai@hotmail.com
Site: www.favelaeissoai.com.br
Associação Imagem Comunitária / Rede Jovem de Cidadania – (31) 3224-3463 / 3213- 8299.
E-mail: aic@aic.org.br
Site: www.aic.org.br
Oficina de Imagens – Paula Fortuna (31) 3482-0217
E-mail: administracao@oficinadeimagens.org.br
Site: www.ocupar.org.br

Foto da matéria: Domingos do Cavaco