Ficção reproduz realidade: atores de aglomerados revivem cotidianos nas telasA filmografia brasileira desde a década de 30 vem tentando representar a favela e o seu cotidiano nas telas. Desde então este contexto tem sido tema recorrente, onde os seus moradores e o cotidiano deles têm sido representados de forma bastante plural e diversificada. De forma geral, as vilas e favelas são mostradas através do malandro carioca, dos trabalhadores que não tem outra opção de moradia, das guerras entre o tráfico de drogas e a polícia e da arte ali produzida, como o samba, o rap, o hip hop e o funk.Em muitos filmes os próprios moradores tornam-se atores ao representar nas telas a sua própria vida. Mas qual o lugar assumido pelos sujeitos nessas produções? Como os moradores da periferia se vêem nessa representação? História das favelas no cinema A representação da periferia em filmes brasileiros não é algo novo na história do cinema. Desde a década de 30 as vilas e favelas já eram representadas através do cinema novo de Humberto Mauro, com o filme “Favela dos Meus Amores”. Segundo Carlos Roberto Souza, nesse filme, mais da metade do elenco era formada por atores da própria favela. Na década de 50, o filme “Rio 40 graus” de Nelson Pereira dos Santos serve como um marco da representação do contexto da favela. Pois, segundo a artigo da professora Miriam de Souza Rossini pela primeira vez “rompe-se com um tipo de estética e de abordagem social que vinha imperando desde as chanchadas e os filmes da produtora Vera Cruz”. A produção aborda a difícil vida dos moradores de vilas e favelas, além de tratar do banditismo de um ponto de vista mais romântico, principalmente através da figura do malandro. Ainda segundo a professora, a favela é representada “como o lugar da pobreza, habitado por trabalhadores cujos salários não são suficientes para morar em outro lugar”. Na década de 60, produziu-se ainda a série de curtas “5 VEZES FAVELA”, “com cinco visões de diretores iniciantes que procuravam aprender algumas dificuldades e desejos do cotidiano dos moradores de favelas”, como avaliou Miriam de Souza Rossini, também em seu artigo “Favelas e favelados: a representação da marginalidade urbana no cinema brasileiro” . “Cinema de Retomada” Segundo a graduanda do curso de psicologia da PUC-Minas, Iara Rocha, que desenvolve pesquisa na área, nas duas últimas décadas a favela representa um novo lugar no cinema. “A partir da década de 90 surge no Brasil uma nova estética de cinema, chamada ‘Cinema de Retomada’ na qual a favela ocupa um papel central e onde o diálogo estabelecido com o restante da cidade apenas se dá pelo confronto, e os retratos vendem a imagem do favelado através da espetacularização da segregação e da pobreza”. Nesse momento ampliam-se os temas envolvendo a periferia. Entre eles: o tráfico de drogas, a arte, especialmente o rap o hip hop e também o funk e de uma maneira ampla o cotidiano”, avalia Iara.Para Cristiane Lima, mestranda na faculdade de comunicação da UFMG o filme documentário “Notícias de uma Guerra Particular”, de João Moreira Salles e Kátia Lund “é o primeiro a tematizar, com contundência, os conflitos entre traficantes e policiais, situando os outros moradores aí entre o ‘fogo cruzado’”, representando assim um marco importante na filmografia brasileira.Nesse período o cinema passa a ser incentivado pela Lei Rouanet e a Lei do Audiovisual provocando um boom de produções cinematográficas. Filmes de ficção como “Orfeu”, de Carlos Diegues e “Cidade de Deus”, de Fernando Meireles, ou documentários como “Santo Forte” e Babilônia 2000”, de Eduardo Coutinho conseguem atrair um grande público. Cidade de Deus “Cidade de Deus” foi primeiro filme de ficção brasileiro sobre o tema favela com público superior há dois milhões de pessoas só no cinema. Apesar dos elogios o filme levantou um importante debate sobre a violência como algo determinante dos sujeitos ou dos moradores de vilas e favelas. Segundo Cristiane Lima, “ele foi apontado por muitos como um filme que glamouriza o crime, estetiza a violência, tornado-a palatável, ao mesmo tempo em que praticamente exclui os contrastes que toda favela abriga. A Cidade de Deus do filme é um lugar de violência tão colossal, que praticamente não enxergamos a possibilidade de haver ali gente honesta, trabalhadora”. Quebra de estereótipos ou não? Mas, assim como em “Favela dos Meus Amores”, em “Cidade de Deus”, grande parte do elenco foi formada por moradores da comunidade, em um grande número dos atores eram os próprios moradores. Segundo Cristiane esse processo “é uma forma dos moradores da periferia participarem efetivamente na formulação e realização dos discursos que versam sobre a sua situação”. Ela ainda cita a antropóloga, professora de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, Esther Hamburger, que afirma que ao participar dos filmes esses moradores de favelas se apropriam dos mecanismos de controle da representação. Para Esther Hamburger, por muito tempo, a periferia foi objeto do discurso controlado por outros. Hoje ela reivindica o direito de ser autora de suas próprias representações.Segundo Cristiane Lima também é importante ressaltar o fato de que apenas a participação na formulação e na representação por parte dos moradores de favelas não ser suficiente para quebrar o estereotipo do “favelado”. Nesse caso, segundo ela, não há real mudança de códigos e valores. Cristiane também avalia como positiva essa forma de participação, “principalmente porque permite aos sujeitos dialogarem e refletirem sobre as imagens e discursos que falam sobre sua situação. Isso reforça laços, fortalece reivindicações por reconhecimento, igualdade social, entre outras coisas”, destaca.Para pesquisar o tema "Cinema e Subjetividade na favela: impactos e resistências",a graduanda Iara Rocha reuniu-se com moradores de um dos maiores aglomerados de Belo Horizonte, o aglomerado da Serra, para debate. De acordo com ela, a maioria dos moradores, participantes da pesquisa, “existem muitas semelhanças entre o que é apresentado no filme e a realidade. No entanto, eles colocam que ‘a favela tem muita coisa boa também e que os filmes utilizam um certo exagero com relação ao real’’’. Assim, a analogia que se faz é que os moradores das favelas do Rio de Janeiro, palco para a maioria dos sets que tratam da favela, é que vivem a realidade representada, enquanto que em Belo Horizonte, apesar de todos os componentes mostrados estarem presentes no cotidiano como assaltos, tráfico, relação conflituosa com a polícia, estes são sentidos em uma proporção menor, pois segundo a fala de um dos moradores ‘aqui ainda se consegue ter paz’. Os entrevistados também se mostraram indignados com o fato de os filmes só exibirem um lado da favela, enquanto que a parte considerada como boa é sempre deixa em segundo plano”. Um filme feito em Belo Horizonte O rapper Ice Band, morador do aglomerado da Serra, participou do filme “Uma Onda no Ar” gravado em Belo Horizonte, que conta a história da Rádio Favela, e acha importante que os artistas da periferia não trabalhem apenas em produções que tenham esse tema. Para ele, é preciso profissionalizar os artores destes locais para que a participação em filmes seja também uma possibilidade de trabalho. No filme a história da sua vida foi contada. Hudson que era envolvido com tráfico teve um fim diferente do personagem que o interpretou.Hoje longe do crime organizado, como não ocorre sempre, Hudson dedica seu tempo à família arte e cultura, ganhando a vida como rapper e educador social. Atualmente desenvolve trabalho em presídios, como depõe no documentário “Quando Canta a Liberdade”.Na pesquisa realizada por Iara Rocha os entrevistados avaliam que o filme "Uma onda no ar", é o que mais condiz com a realidade. Sugestões de fontes:1. Iara Rocha – graduanda em psicologia pela Puc-Minas autora da pesquisa "Cinema e Subjetividade na favela: impactos e resistências". Contato: iarasalvo@gmail.com2. Cristiane Lima – mestranda em comunicação social pela UFMG autora da pesquisa Contato: 3409-4189 assessoria da UFMG3. Hudson Carlos – Ice Band rapper Contato: 8684-9052 / www.myspace.com/iceband